domingo, 1 de março de 2015

E porque não?


Não me considero uma pessoa altruísta. Talvez seja defeito de carácter mas não vou dourar a pílula. Sou o que sou.
Hoje por motivos pessoais dirigi-me ao fim do dia a uma das maiores superfícies comerciais de Lisboa. Fiz o que me levou lá e contra toda a réstia de bom senso que ainda possuo, saí e fui fumar um cigarro.
A meio do terceiro bafo, dou-me conta de uma senhora acompanhada de uma menina que não devia ter mais de 6,7 anos. Roupas algo gastas, olhares pregados no chão, mão estendida, frio. Tanto frio ao ponto das mãos da senhora não terem qualquer réstia de cor. Não foi preciso juntar 2+2 para concluir que a senhora estava a pedir alguma generosidade dos transeuntes. Aquilo cortou-me o coração. A mim, que tenho um bloco de gelo no local onde outrora batia algo.
Deixei o meu cigarro a meio e dirigi-me na sua direcção. Aos poucos, o seu olhar encontrou o meu. Meio assustado, meio tímido, meio expectante. Ajoelhei-me e perguntei à pequena...
- Olá. Como te chamas?
Ela olhou para a mãe na procura de aprovação para falar com o estranho que estava à sua frente, a qual obteu com um aceno de cabeça por parte da mãe.
- Vanessa - retorquiu ela.
- Que bonito nome, Vanessa. Sabes, está muito frio aqui fora. Será que a tua mãe e tu não querem beber algo quente lá dentro? - questionei.
- Podemos, mãe? - perguntou ela com um brilho nos olhos que só uma criança tem.
Uma vez mais a mãe acenou em sinal de concordância, embora desta vez com muito mais renitência. Não esperava reacção diferente. Afinal de contas, um completo estranho convida ambas a tomar algo quente quando se calhar haviam passado ali horas a fio sem que sequer meia dúzia de pessoas tivesse dado conta da sua presença ali ao frio gélido.
Dirigimo-nos ao café mais próximo e sentámo-nos.
- Gostas de chocolate quente, Vanessa? - perguntei.
- Sim, e a minha mãe também. - disse ela com o primeiro sorriso que lhe havia visto desde que as abordei lá fora.
A mãe mantinha o silêncio. Não a censuro. No lugar dela, possivelmente teria agido da mesma forma.
- Seja então. Chocolate quente para todos! - disse.
Enquanto bebíamos o chocolate em silêncio (embora ambas com satisfação, era notório), esse mesmo silêncio foi quebrado pelas primeiras palavras da mãe.
- Posso fazer uma pergunta? - questionou.
- Claro. Diga. - retorqui.
- Porquê? - disse com ar curioso
- Porque não? - retorqui com um sorriso.
Simplesmente sorriu de volta. Percebeu exactamente o alcance da minha questão/resposta. Porque é que não devemos auxiliar aqueles que por uma razão ou outra de momento são menos afortunados que nós com um gesto tão minimalista como um chocolate quente numa tarde gélida?
De repente, a Vanessa meteu-se no meio da conversa.
- Porque é que tem o cabelo comprido? Isso não é coisa de meninas?
- Eu gosto. Achas que me fica mal? - perguntei com um sorriso.
- Não, eu gosto!
E num ápice abre a mochila que trazia com ela, tira de lá uma bandolete roxa e entrega-ma.
- Toma. Sabes, é para o cabelo não lhe ir para os olhos... - disse.
Não consegui evitar o maior sorriso do dia.
- Sabes Vanessa, era exactamente disto que estava a precisar. Muito obrigado. Vou guardá-la para sempre com muito carinho...
Acabámos o chocolate quente e após a mãe (nunca cheguei a saber o nome da senhora, não era de todo relevante) ter agradecido o gesto, estendi-lhe a mão. Ela ao cumprimentar-me, fiz-lhe chegar uma pequena "oferenda" dobrada em quatro partes.
- Não sei a sua história, as suas dificuldades ou o que a leva a enfrentar o frio gélido do dia de hoje. No entanto, não sou indiferente ao sofrimento alheio. Desejo a ambas tudo de bom.
E ambos seguimos caminhos distintos.
E a questão permanece. Porque não? Porque é que fingimos não ver o sofrimento alheio que está à vista de todos? Porque não perder algum do nosso tempo e dar a mão a algumas pessoas que por qualquer infortúnio da vida, se vêm na iminência de pedir alguma bondade?
Não fiquei mais pobre por pagar dois chocolates quentes a duas desconhecidas. Julgo até que saí enriquecido desta experiência. Não sou tão frio quanto pensava.

Lisboa, 28 de Novembro de 2013.

Copiado do excelente blog do nosso compadre Gato Pardo, alentejano de gema...
http://gato_pardo.blogs.sapo.pt/

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