quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Do café negro se faz o dia claro...


Do café negro se faz o dia claro. Nasce com os homens num estalido de língua no céu-da-boca, seco, amargo, pungente, a gritar ao mundo que o dia começou e é para se viver. Do café negro, dos negros, se fazem mil misturas mais ou menos puras, mais ou menos corruptas como os homens e as raças que são compostas por eles. Cá na Terra o café sabe a família também, às noites no lar, por dentro dele, a dois ou a muitos. Sabe a brasa apagada que se deitou no fundo da chocolateira para que se beba sem borras, sem terra. O café é companheiro, é fiel nos seus gostos e vai especialmente bem com o doce dos  bolos no serão mortiço ou com a firmeza do pão a acompanhar toucinho, o queijo quando os há, a qualquer hora. É caseiro o café da Terra. Não se bebe na rua. É convite para entrar e sentar à mesa já posta. É remate lógico de uma mesa nem sempre farta mas sempre bem rodeada de gente e de conversa. Em boa verdade, todos os que chegarem têm lugar à mesa. Ainda que a mesa não seja mais do que uma velha amassadeira onde mal cabe a tigela para todos comerem dela. Ainda que o caldo seja só um perfume de ervas e azeite em que se banham repetidas fatias de pão que se multiplica num milagre de casa. O café da noite nem bem café se chama. Traz com ele moídas, a chicória, a cevada, para dar gosto de cereal, encher barriga e aliviar o custo deste primeiro ouro negro. Vende-se em sacas de pano ou latões na venda, na mercearia e é medido em arráteis.
As memórias da Terra confundem-se com o aroma do café. No final das festas, em cima de tabuleiros de paninhos bordados, servem-no aos últimos convidados as mães das meninas-rainhas de vestidos coloridos. Servem-nos os que restam compostos, da família destroçada num velório que se prolonga invariavelmente, pela noite fora. Bebem-no os velhos e os novos, junto ao crepitar da lenha ou no que sobrou do borralho na lareira que é sala, que é divisão da casa. Haverá alguns que o beberão de manhã e os que o fazem não o deixam entrar sozinho quente, dentro do corpo. Vertem-no numa tigela e cortando com paciência o pão em pedaços mais pequenos que os dedos de uma mão, juntam-nos com um sopro de açúcar e algumas voltas de uma colher. O café dança nos salões de baile com as moças solteiras - que o vinho não é para elas. O café canta e chia nas cafeteiras de ferro em cima das trempes nos fogões. Chá é para doentes, café é vida, é urgência, é cheiro da terra também. 
Depois do café pousam-se as cartas de jogar, lavam-se as chávenas, deita-se a família e dorme a Terra.
Copiado do blog da comadre Ana Terra: http://aterradaana.blogspot.pt/
Foto gentilmente cedida pela comadre Maria Madalena Silva.

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